quinta-feira, 26 de outubro de 2023

Cidade nas nuvens

 


Uma boa história tende a se tornar imortal. Ela atravessa séculos, gerações, entrelaçando caminhos, determinando destinos. É o caso da narrativa que protagoniza o livro Cidade nas nuvens, Cuconuvolândia, inspirada no clássico As aves, de Aristófanes.

A princípio, tive a sensação de que o autor tentou abraçar um processo ambicioso demais; mas, aos poucos, captei uma de suas principais mensagens. Independente do tempo no qual se vive, as pessoas nutrem anseios, desejos, sonhos, esperanças, medos muito semelhantes.

Anthony Doerr retrata três épocas diferentes. Nas páginas de sua obra é possível navegar por Constantinopla, às vésperas de sua ocupação pelos otomanos; pelo estado de Idaho, nos Estados Unidos, em pleno século 21, e por uma era futurista, no interior da Argos, uma nave espacial que ruma na direção de um planeta distante.

Como em um triângulo, as histórias se desdobram e aparentemente convergem em um único vértice: a paixão por um livro, protagonizado por Éton, um sonhador que almeja atingir um pretenso paraíso, Cuconuvolândia, uma cidade construída nas nuvens.

Ainda não concluí a leitura do livro; afinal, é mesmo um épico, uma jornada por 746 páginas. Porém já me apaixonei pela trama e por seus protagonistas; nas três eras nos deparamos com personagens que parecem nada ter em comum, todavia seus caminhos se mesclam, revelando uma incrível semelhança em suas travessias. E a cada avanço da história surpresas e reviravoltas nos extasiam.

Em Constantinopla, as crianças Anna e Omeir pertencem a mundos distintos; ela vive no interior das muralhas e ele, um otomano tão excluído quanto a garota, vê-se compulsoriamente recrutado pelas forças do sultão para transpor a fortaleza até então considerada inviolável. Em sua jornada, Anna leva consigo um exemplar de Cuconuvolândia, já corrompido pelo tempo.

Cinco séculos depois, as trajetórias de Zeno e Seymour também se cruzam; ambos viveram uma infância conturbada, foram discriminados e viram seus sonhos se despedaçarem. Em sua velhice, Zeno vê sua vida virar de cabeça para baixo ao ter a oportunidade de decifrar a mesma narrativa, então quase indecifrável.

No universo futurista, Konstance aparentemente é a única sobrevivente na Argos; ali ela interage com Sybil, uma inteligência artificial, mergulha nas lembranças de um tempo no qual a nave fervilhava de viajantes espaciais imersos na esperança de alcançar um novo mundo, similar a Terra. E passa seu tempo tentando montar os fragmentos das aventuras de Éton.

Proscritos da sociedade ou da realidade, Anna, Omeir, Zeno, Seymour e Konstance se refugiam em um universo alternativo, o mesmo que atraiu Éton, simplório pastor que recorre à magia para se transformar num pássaro e, assim, poder voar rumo à cidade nas nuvens.

A história é mesmo arrebatadora. O mais incrível é que o tempo parece ser circular; quando nos concentramos em uma das eras retratadas, temos a impressão de viver o momento presente. Para reforçar essa ideia, a trama não se inicia no século XV, e sim no interior da Argos. Além disso, o autor salta de um período para o outro, sem seguir qualquer linearidade.  

Ah e não se preocupem com o número de páginas. Atravessamos o livro como uma nave no espaço. Quando nos damos conta, já percorremos mais da metade do caminho.

Anthony Doerr é vencedor do prêmio Pulitzer com Toda luz que não podemos ver, adaptado para exibição no Netflix, com estreia prevista para 2 de novembro de 2023.

 

Cidade nas nuvens

Anthony Doerr

Editora Intrínseca

752 páginas


quinta-feira, 12 de outubro de 2023

O Senhor Estresse

 




O estresse é hoje uma das questões mais debatidas e experimentadas na própria pele. Para transcender os clichês e compreendê-lo melhor é bom mergulhar nas origens dos estudos sobre o tema. As pesquisas se iniciaram no século XIX, conduzidas pelo médico Claude Bernard; ele estabeleceu os alicerces para as investigações posteriores.

Aí veio um fisiologista chamado Walter Cannon. No desejo de descobrir como nossas emoções impactam o funcionamento do organismo humano, ele foi o primeiro a desvendar os mecanismos da célebre reação de “luta ou fuga” diante dos perigos.  

Aliás, para quem deseja entender melhor como nossas emoções influenciam nosso corpo e também a nossa vida, recomendo a animação Divertidamente, que com certeza muitos já assistiram.

A animação narra a história de Rilley, uma garota de 11 anos que passa por várias mudanças na sua vida. Ela é obrigada a deixar sua cidade natal, em Minnesota, nos EUA, para morar em São Francisco. A história transcorre no interior da mente da protagonista, onde cinco personagens, as emoções Alegria, Tristeza, Medo, Raiva e Nojo têm uma importante missão a cumprir.

Elas precisam processar os dados que chegam ao cérebro e arquivar as memórias. Nesta trama genial percebe-se que o medo e o próprio estresse também nos ajudam a sobreviver. Só não podemos paralisar diante de eventos que provocam o pânico e a ansiedade, como pandemias, por exemplo, ou guerras, como a que presenciamos, agora, entre Israel e a Palestina.

Pois bem, foi outro pesquisador, o endocrinologista Hans Seyle, que tornou a palavra ‘stress’ popular e definiu suas várias fases. Para ele, o stress não era nem bom, nem ruim, mas sim uma resposta aos desafios da vida. Mas, então, como o estresse torna--se nocivo, provocando doenças?

Para responder esta questão, vamos às etapas do estresse. A primeira fase é o alerta. Vemos nas imagens dos conflitos entre judeus e palestinos o constante soar de sirenes, mísseis cruzando os céus. Se o organismo de quem assiste as cenas ao vivo produz um alto grau de adrenalina, tentem imaginar o que ocorre na mente e no corpo de quem passa por essas experiências.

Quando o corpo transcende a fase de alerta e vence a ameaça, pode-se dizer que  houve um estresse benéfico, sem sequelas. Porém, se o agente externo que está provocando o estresse é difícil de vencer, como em um conflito bélico, o corpo continua a responder de forma crônica. Nesses casos, as mudanças corporais e de comportamento levam a um estado de exaustão. É quando o  Sistema Nervoso desregula.

Um ótimo documentário sobre esse tema é Corpo Humano: Nosso Mundo Interior, em exibição no Netflix. Nele o autor afirma que o Sistema Nervoso, foco do primeiro episódio, “percebe o mundo e te diz como reagir a ele.”  

Para regular esse caos, entra em cena o Sistema Parassimpático. Ele tem um papel ativo e fundamental na regulação do descanso e do bem-estar; por essa razão, ajuda a frear e regular o Sistema Nervoso Simpático. É possível acessá-lo através de práticas de relaxamento, como as terapias mente-corpo, a Yoga Restaurativa e a meditação.

 

 

 

 

 

 

quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Diálogos impossíveis

 



- Não sei se já nos encontramos antes, mas me aconchegar em seu ventre me despertou profunda conexão.

“Essa criança vai destruir minha vida. Agora que minha carreira está decolando... Se levar adiante a gestação, jamais terei uma oportunidade como essa.”

- Olha só, prometo te ajudar, te apoiar. Confia. Deus tem seu próprio tempo. Na hora certa Ele vai te recompensar.

“Já decidi. Estudei muito; amo demais minha profissão para abrir mão dessa chance de trabalhar no exterior. Vou procurar o médico que minha amiga me indicou.”

- Pelo menos me deixe viver. Quando eu nascer, se não mudar de ideia, você pode me doar para alguém.

“Eu até poderia aguardar o nascimento da criança. Mas se meu chefe souber da minha gravidez, vai dar a promoção para outra pessoa. Afinal, ele precisa de mim agora, não daqui a sete meses.”

- Por favor, eu me encolho aqui. Ninguém nem vai perceber que sua barriga cresceu. Faço qualquer coisa por uma oportunidade de viver.

“Afinal, é só um feto mesmo. É melhor eu me apressar. Ainda não há vida em meu útero.”

- (Profunda tristeza e angústia).

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- Ah, que delícia navegar nesse oceano quentinho. Já te amo, mãezinha.

“Ai, meu corpo está se deformando. Já engordei, os seios crescendo. Daqui a pouco meu namorado vai procurar outra mulher.”

- Olhe bem no espelho. Mais bela que nunca. Seus olhos brilham, a pele ganhou uma luz especial. Papai deve estar muito feliz.

“Não, não, não nasci para ser mãe. Quem vai cuidar do bebê enquanto vou dançar, me divertir? Meus pais foram bem claros. A responsabilidade é só minha e do pai da criança.”

- Pode continuar dançando enquanto estou por aqui. Gosto muito de música também. E depois do meu nascimento, é só uma questão de dias. Vou conquistar meus avós; eles vão cuidar de mim.

“Só de pensar no parto fico maluca. Duvido que ele vai segurar minhas mãos, como prometeu. Hoje nem me ligou. Depois, roupa de grávida não faz meu estilo. Quero continuar a curtir a vida.”

- E eu só quero viver. Olha, é por pouco tempo. Certeza que meus avós vão ficar comigo. Você não precisa me criar. Pode continuar se divertindo.

 “É isso. Meu amor acabou de me mandar uma mensagem. Por sorte, pensa como eu. Somos muito novos. Vou procurar a médica que ele encontrou. Logo estaremos livres.

Sem culpa. É só um feto. Nem tem alma ainda, então é um ser sem vida.”

- (Revolta e desespero).

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- Graças a Deus um ventre decidiu me abrigar. Obrigada, mãe.

“Como vou criar mais um filho? Já fiz e refiz todas as contas. Meu Deus, uma sexta criança? Vai passar fome, sede, nem terá o que vestir. Desse jeito vou morar na rua.”

- A gente dá um jeito, mãezinha. Pense bem, não serei só mais uma boca, mas também um braço para trabalhar. Só me deixe viver.

“Que desespero. Nem um aborto posso pagar. O que fazer? Minhas crianças estão desnutridas. Por que Deus me manda mais uma?”

- Porque Ele confia na sua força, na sua capacidade de superação. Estou disposto a qualquer coisa para ter o dom da vida. Aliás, fetos são seres vivos, viu? Por favor, tem que me ouvir.

“Talvez minha comadre possa me fazer umas ervas. E de agora em diante meu marido vai ter que usar a tal camisinha, ao invés de ficar no bar bebendo.”

- Mãezinha, ouça. Me deixe nascer. Aí pode me dar para alguém criar. Vou entender.

“Poderia deixar esse bebê nascer. Mas para isso vou ter que me alimentar melhor. Senão ele vai morrer dentro do meu ventre. E talvez me leve junto. Aí quem vai cuidar dos outros?”

- Acredite em Deus, mãe. Ele vai me deixar nascer, eu sei. E a senhora ainda vai viver muito tempo.

“Posso não. Me sinto sem forças. Se pelo menos meu homem me ajudasse... Pronto. Vou procurar a comadre.”

- (Desânimo. Raiva.)

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Tantos outros cenários. Mesmos impasses. Diálogos improváveis. Desconexão.

Pais que ignoram o essencial. Fetos têm vida. Fetos importam.

O que significa tirar uma vida? Quais as implicações físicas, psíquicas, espirituais?

Sem julgamentos, sem críticas, sem condenação. Afinal, não sou Deus. Apenas levanto questões. Deixo aqui fragmentos e reflexões.