quarta-feira, 30 de março de 2011

Resenha - "O Garoto da Casa ao Lado" (Irene Sabatini)

Esta obra é a mais poética, arrebatadora e dolorosa visão sobre o processo de amadurecimento do Zimbábue, país africano colonizado pelos ingleses no século XIX, após a descoberta de ouro em suas terras. O pioneiro Cecil Rhodes, que investiu no desenvolvimento desta nação, inspirou seu nome antigo, Rodésia, que permaneceu em voga até a conquista da independência, em 1980.
Convivem neste território os ancestrais shonas, de procedência banto, e os ndebele, de naturalidade zulu, que desembarcaram neste país no século XIX. Há também os rhodies, brancos africanos. É neste contexto que se desenrola a história de amor e a maturação emocional de dois jovens zimbabuanos, Lindiwe e Ian.
Mamãe, papai, Rosanna e eu tinhamos assistido à Cerimônia de Independência na televisão, há mais de dois anos. O Príncipe Charles parecia meio triste quando lhe deram a bandeira britânica; tinha a boca muito firme, como se estivesse fazendo força para não chorar, para não envergonhar a Rainha. Em toda a semana anterior, o Herald fizera uma lista das beldades zimbabuanas brancas que seriam noivas perfeitas para o príncipe.
A autora enfoca o relacionamento entre a garota negra, que acaba de completar 14 anos, e o jovem branco, de 17 anos, acusado de matar sua madrasta ao incendiar seu corpo. Tudo acontece na casa ao lado da que a família de Lindiwe reside. Este evento marca não só a cidade de Bulawayo, mas também a vida destes adolescentes, que estão apenas iniciando sua trajetória existencial.
Aos poucos seus passos convergem para as mesmas trilhas, seus corações passam a balançar no mesmo compasso, apesar de todas as diferenças étnicas, sociais e comportamentais. Eles pertencem a mundos distintos, mas nada os impede de mergulhar em uma paixão proibida, que pode virar suas vidas de cabeça para baixo.
Enquanto falava, eu pensava que não se parecia com nenhum dos brancos que eu já tinha visto em Bulawayo. Tentei descobrir se eu sentia isso apenas porque estava começando a conhecê-lo. Se eu não o conhecesse, se o visse nas ruas, será que pensaria "ah, olha ali um rhodie, saudosista da Rodésia"? Tentei refletir sobre o que o tornava diferente para mim, o que eu gostava nele; quis fazer uma lista na minha cabeça. Mas era difícil fazer uma lista, pois eu parecia voltar sempre a um só ponto: ele é Ian, o garoto da casa ao lado, a pessoa que estou começando a conhecer.
Ian McKenzie provém de um ambiente familiar conturbado. Ele foi supostamente abandonado pela mãe aos 6 anos e logo cedo teve que aprender a conviver com a brutalidade e o alcoolismo de seu pai, um veterano de guerra, e com uma madrasta que lhe impunha terríveis humilhações, além de levar sempre um amante novo para casa na ausência do marido.
Lindiwe Bishop também é filha única; seu pai era pardo, mas orgulhoso de sua origem racial; ele trabalhava nos Correios, no setor de telecomunicações, e ocultava terríveis segredos sobre sua participação nos confrontos pela Independência do país. Sua mãe, negra, mas preocupada em agradar os brancos, refugiava-se na Igreja e obrigava sua filha a agir como as crianças rhodies.
Minha escola nova era outrora uma Escola Grau A, exclusiva para brancos. Eu passara por uma prova de ingresso. Papai torceu a boca; não gostava quando mamãe falava em pardos e negros. Ainda que todos o classificassem como pardo (ele tinha pele clara, cabelo bom e nariz reto), ele não se via assim. (...) Tinha orgulho da mãe, que o criara em Nyamandhlovu. Seu pai era um fazendeiro branco que concordara em colocar seu nome na certidão de nascimento e pagara por seus estudos.
Apesar de todas as impossibilidades, os caminhos de Ian e Lindiwe estão sempre se cruzando, mesmo depois do tempo em que permanecem distantes, quando seus destinos parecem navegar por águas totalmente distintas. A intensidade do sentimento que os une, porém, transcende desafios e obstáculos, sejam eles pessoais ou emergentes do panorama político-social, indissociável dos problemas raciais e existenciais de cada zimbabuano.
Além dos protagonistas, a narrativa é povoada por personagens inesquecíveis, como o guerreiro Maphosa; a doce Rosanna; a sensual Bridgette; e, do lado sombrio, Robert Mugabe, chamado ironicamente de Bob por seus adversários, que subiu ao poder em 1980 como líder socialista, permaneceu como presidente e ainda continua no comando do país, após diversas eleições controvertidas.

Residência em Bulawayo

E aí vai, aí vai o nosso querido presidente e intrépido primeiro viajante (o Vasco da Gama africano, partindo para descobrir mundos perdidos, como o definiu gloriosamente o secretário-geral do centro acadêmico), trajando as mais finas vestimentas, alegre e entusiasmado como um garotinho de escola. Realmente, por que não? Uma vida de serviço aos outros deve certamente, certamente, ser recompensada um dia. Nada mais justo.
Nesta história rica em informações históricas e culturais, entretecida por uma linguagem em alguns momentos poética, e em outros instantes crua e assustadora, a autora se espelha na protagonista. Ela também cresceu em Bulawayo, consumindo vorazmente os livros da biblioteca pública local; foi igualmente para a Universidade e se deixou seduzir pelo fascínio de outras culturas e experiências.
Seus personagens são tão nítidos, suas trajetórias tão vívidas, que chegamos a acreditar na sua real existência, tão tangível como a história de seu país. Ian e Lindiwe representam, talvez, o futuro de uma nação que ainda não se concretizou; eles são frutos da mente inventiva e esperançosa de uma zimbabuana que acredita em seu país, apesar de toda a destruição que testemunhou.
"As pessoas estão desesperadas", repetem todos. As pessoas estão desesperadas. Estamos seguindo rapidamente pelo caminho da África do Sul. Sequestros e coisas assim. Os jovens veem todos aqueles Pajeros e também querem enriquecer rápido. Veem a corrupção e o roubo entre os mais velhos, então por que não eles? Por que têm de morrer de fome, sacrificar-se, ser panacas como seus pais? Por que têm que ficar para trás? Não. Sem chance. Vão botar as mãos no que desejam, rapidinho. Se o governo não lhes arruma empregos, vão se virar por conta própria.
Não posso também deixar de mencionar que um dos personagens principais deste livro é a memória; são seus fios que conduzem o leitor através das lembranças de Irene Sabatini; elas são praticamente convertidas em cenas cinematográficas na nossa mente, tamanha a riqueza de detalhes presente nas descrições do Zimbábue recém-independente e na revelação de sua profunda decadência posterior.
Irene Sabatini decidiu se aventurar por outros países após concluir os estudos universitários; escolheu a Colômbia, pela profunda sintonia com sua cultura. Foi aí, ao meditar em um antigo monastério dominicano, que lhe veio a inspiração deste livro, seu primeiro romance, premiado com o Orange Award 2010 na categoria autora revelação.

Autor:  SABATINI, IRENE

Editora: NOVA FRONTEIRA
Assunto: LITERATURA ESTRANGEIRA - DRAMA
ISBN: 9788520922354

Origem: NACIONAL
Ano: 2011
Edição: 1
Número de Páginas: 411
Acabamento: BROCHURA

Um comentário:

  1. Oi Ana, gostei muito dessa resenha, esse livro me pareceu incrivel, espero um dia topar com ele por ai e apreciar tanto essa obra como você mesma apreciou.

    Sobre a parceria com o blog, eu vou colocar o teu link-me la na parte de blogs amigos que fica em cima do aquario, porque os parceiros que ficam ali em cima abaixo das editoras é por causa de um projeto que to realizando anualmente no blog, na aba termos de parcerias eu explico ele certinho.

    Beijokas e seja sempre bem vinda ao blog!!!Elis!!!!!

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