O autor afirma que escreveu este livro apenas para entreter o leitor e a si mesmo, mas acredito que ele foi bem além desse propósito inicial. Sua obra é uma parábola moderna sobre os descaminhos a que o ódio e o desejo extremo de vingança podem conduzir o ser humano, e uma apologia da tolerância e da liberdade de escolha.
Ele atinge seu objetivo ao mesclar pitadas de romance, muita ação, suspense, momentos eletrizantes, seres misteriosos e revelações que são dosadas gradualmente, muitas delas imprevisíveis, até mesmo para os leitores mais perceptivos. No prólogo já é possível perceber os rumos que determinarão a trama; aí já estão presentes os grigori, criaturas de outra dimensão, e os caídos, rebeldes que deixam a Eternidade para permanecer na Terra, com os mais diferentes propósitos.
- Você conhece as regras, Neberiah. Elas existem por um motivo. Não importa quantas pessoas você salve. Você está acabando justamente com o que quer salvar.
Neberiah gritou, quase desesperado:
- Mas eles vão se destruir!
Kaliel respondeu, plácida:
- É o direito deles.
Estes seres são como os anjos bíblicos, etéreos, diáfanos, pura energia. Os grigori seguem as regras cósmicas, as quais não permitem que o Homem tenha seu livre-arbítrio violado, mesmo que suas escolhas conduzam a Humanidade a sua própria destruição. Os caídos pensam de outra forma: alguns deles, como Sariel e Belial, que estão na Terra há sete mil anos, acreditam que o ser humano deve ser salvo de si mesmo, e para alcançar esse fim todos os meios são válidos.
No início da história três grigori se materializam em uma rua escura e deserta; é muito interessante acompanhar as distintas reações de Kaliel, Daqshael e Oriniel aos seus corpos e ao ambiente terreno. Logo depois eles já estão em pleno combate de espadas com seus oponentes, dois caídos, Neberiah e Azra, os quais são derrotados, embora Oriniel também seja abatido neste conflito.
Da luz, três corpos começaram a surgir. (...) Formados a partir do nada, criados naquele mesmo instante, três seres com a forma humana apareceram no meio da rua. (...) Não tinham nomes, uma vez que acabavam de surgir, mas eram indivíduos: de onde vinham, tinham identidades próprias. A cada identidade, a cada uma daquelas personalidades, correspondia uma vibração, e a cada vibração, um som. (...) ainda ligados a um mundo onde o tempo e o espaço quase não tinham significado.
Estas lutas se multiplicarão ao longo do livro; na verdade, apesar das vivas descrições destes embates, eles se tornam um pouco repetitivos no final do livro, talvez mesmo por conta da riqueza de detalhes, pois cada golpe dos adversários é descrito minuciosamente ao longo dos confrontos.
Vinte e três anos depois, Daqshael e Kaliel ainda estão na Terra, e aos poucos o leitor descobrirá o vínculo que os une aos protagonistas, Érico e Aline, Nephilins, filhos de um anjo e uma mortal, e irmãos gêmeos separados por inúmeras tramas do destino, orquestradas pela liberdade de escolha dos envolvidos nesta história.
Quando finalmente os irmãos se encontram, trágicos eventos os afastam novamente. Aline está casada com Sariel, o caído que deseja salvar a Humanidade por meio de sua destruição; Érico cruza o caminho deste ser exatamente quando ele mata o grigori que tenta impedi-lo de dar sequência a seus planos, e passa a ser perseguido pelo cunhado, o qual desconhece a ligação da esposa com a testemunha de suas ações.
Só naquele instante... Só ali ela percebeu o imenso vácuo de identidade que se preenchia. Vinte e três anos ela vivera sem saber de onde vinha, de quem descendia, o que tinha herdado. Vinte e três anos sob a sombra de pais que não a amaram o bastante. Vinte e três anos debaixo de uma história subliminar que nunca seria contada. Vinte e três anos nas trevas, e ela nunca havia percebido.
Para complicar ainda mais este inusitado contexto, Érico descobre que seu pai também é um grigori, e um passado desconhecido aflora diante de seus olhos, provocando em seu íntimo uma crise de identidade sem precedentes. O protagonista descobre também que nasceu com um ‘abascanto’ natural, ou seja, uma proteção contra os poderes que irradiam dos seres de outra dimensão; é por esta razão que somente ele pode testemunhar a morte do grigori.
Novos e trágicos eventos opõem radicalmente Érico e Sariel; o jovem se deixa dominar pelo ódio cego e por um avassalador desejo de vingança, sentimentos que cristalizam seu coração e se transformam em fantasmas a pairarem incessantemente sobre sua mente entorpecida pela ideia fixa de destruir o caído. Ele fica surdo a todos os apelos que o estimulam a perdoar para poder triunfar sobre os planos ambiciosos de seu adversário, e suas emoções conturbadas o conduzem a um caminho sem volta.
A tia pousou a mão no ombro dele. O toque algemou seu olhar ao dela.
- Érico. Eu acho que você deveria lidar com isso de outra forma, meu anjo. Encontrar em você a força para perdoar Sariel. Isso o colocaria muito acima dele. Isso, sim, iria libertá-lo. A vingança, Érico, só vai abrir outro buraco no seu espírito. Ela não preenche nada. Ela é só mais uma ilusão. (...) Eu vou te ajudar, Érico, porque, se você não for mais forte do que essa situação, se você cair no abismo da vingança, meu anjo, eu eu vou ter que estar do teu lado pra te dar a mão.
No final, o leitor com certeza sentirá falta dos personagens bem constituídos e do universo fascinante de Diogo; confesso que algumas passagens me surpreenderam demais, e chegaram até a me deixar abalada. Érico não se assemelha jamais aos heróis tradicionais; seus conflitos interiores, suas escolhas, medos, ações e sentimentos espelham os mesmos que nos movem em nossas jornadas existenciais. Aline também não é a garota frágil que aparenta ser; sua força interior emerge quando menos esperamos.
Este é o segundo livro de Diogo de Souza, já conhecido por Fuga de Rigel, um enredo inventivo que envolve seres paranormais e uma sociedade secreta. Autor independente, ele é uma surpresa no gênero fantástico da literatura nacional contemporânea. Sua inspiração para a concepção de Abascanto nasceu em 2003, mas somente em 2008 ele decidiu dar início a essa trajetória que concebe como um conto de fadas moderno.
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