quarta-feira, 25 de maio de 2011

"Só Garotos" (Patti Smith)





Patti Smith sonhava com uma canção que despertasse os mortos, mas neste livro ela foi além ao recriar e eternizar a imagem do artista Robert Mapplethorpe. Ela cumpriu a promessa feita ao amigo, amante e companheiro de todos os momentos; antes de sua morte, jurou que imortalizaria a história de ambos em uma teia de palavras e imagens.

Por que não consigo escrever algo que faça despertar os mortos? Essa busca é o que arde mais fundo. Superei a perda de sua escrivaninha e da cadeira, mas nunca o desejo de produzir uma corrente de palavras mais valiosa que as esmeraldas de Cortés.
Ao acompanharmos a trajetória deste inusitado casal temos a impressão de que ambos nasceram já predestinados a um encontro que transformaria radicalmente suas existências e deixaria uma marca significativa na produção artística dos efervescentes anos 60 e 70 em Nova Iorque.
Ambos nasceram no mesmo ano, em 1946, numa segunda-feira; ela na véspera de ano-novo, em Chicago; ele no dia 4 de novembro, na cidade de Long Island. Robert era fruto de uma família conservadora e católica, enquanto Patti desfrutava de um ambiente mais liberal, embora primasse pelas constantes dificuldades financeiras. Os dois tinham uma atração irresistível pelos ícones do catolicismo.
Desde a infância Patti e Robert cultivavam um fascínio especial pelo belo; criada em Nova Jersey, a futura poeta e performer descobria aos poucos o valor da beleza e a rebeldia do rock and roll; mais tarde ela faria uma fusão histórica deste ritmo subversivo e do poder da poesia, inspirada em Bob Dylan e no poeta francês Arthur Rimbaud.
Foi minha entrada na radiância da imaginação. (...) Bem no fundo de mim mesma, com a simetria de um floco de neve girando acima de mim, intensificando-se através das minhas pálpebras, capturei o mais valioso suvenir, um caco do caleidoscópio do céu.

 Robert, por sua vez, despertava precocemente sua irresistível atração pelas artes visuais, encantado com jogos de luzes e sombras, tons e brilhos, ornamentos e revestimentos. Além disso, ele adorava chocar as pessoas com seus desenhos preenchidos por cores inusitadas, combinações que intrigavam as pessoas e provocavam as mais diversas reações; o inquieto e polêmico artista já estava presente no garoto que se dedicava a produzir camafeus e colares de miçangas.
A luz caiu sobre as páginas de seu livro de colorir, sobre suas mãos de criança. Ele ficava animado ao colorir, não com o ato de preencher o espaço, mas com a escolha de cores que ninguém mais escolheria. (...) Era um desenhista nato e secretamente distorcia e tornava abstratas suas imagens, sentindo seu poder aumentar. Era um artista, e sabia disso.

Patti, aos vinte anos, decide partir para Nova Iorque com uma bagagem singela e nada no bolso, com exceção de algum dinheiro para comprar sua passagem, o qual, aliás, ela complementa com a ajuda do anjo do destino que a guia até a cidade dos artistas. A jovem sulista espera contar com o apoio de amigos que moram no Brooklyn, mas eles já não estão mais no mesmo endereço; é neste momento que ela vê Robert pela primeira vez.
A garota sonhadora, que alimenta o desejo de ser artista, mas ao mesmo tempo não compartilha da loucura de outros amantes da arte, vai se unir algum tempo depois ao garoto sensível e delicado, belo como um anjo, que alimenta em sua alma um turbilhão em constante ebulição, um ser mutante que tenta dolorosamente expressar a forma de cada pensamento que atravessa sua mente.
Ele seria uma capa comprida, uma pétala de veludo. Não era o pensamento mas a forma do pensamento que o atormentava. Entrava nele como um espírito horrível e fazia seu coração bater pesado, descompassado, sua pele vibrar e ele se sentir sob uma máscara fantasmagórica, sensual mas sufocante.
Juntos eles atravessam os períodos mais difíceis de suas vidas, a penosa busca pela expressão artística, por um sentido existencial, pela tradução de seus anseios. Enquanto Robert é movido pelo desejo de compreender sua ambígua sexualidade, por uma ambição que se traduz no afã de ser reconhecido e de conquistar a independência financeira, Patti é mobilizada pelo sonho de fazer a diferença com sua arte, de lutar pela justiça e revolucionar o mundo com as armas da poesia e do rock and roll.


O casal vive inicialmente no Brooklyn, uma fase ingênua e romântica; aos poucos, porém, Robert se torna sombrio, o que se reflete em seu trabalho; seu comportamento provoca a primeira e única ruptura entre ambos. Nesta época Patti vai a Paris pela primeira vez ao lado de sua irmã Linda.
Não me importava trabalhar na obscuridade. Eu era apenas uma estudante. Ao passo que Robert, embora tímido, não verbal e aparentemente desconectado dos outros a sua volta, era muito ambicioso. Ele considerava Duchamp e Warhol seus modelos. A grande arte e a alta sociedade; ele aspirava a ambas. Éramos uma mistura curiosa de Cinderela em Paris e Fausto.
Ao voltar para Nova Iorque ela se une novamente a Robert, apesar de já estar ciente de sua homossexualidade. Após uma breve e terrível passagem pelo decadente Hotel Allerton, o pior estágio de suas vidas, eles seguem para o Hotel Chelsea, o recanto dos boêmios e artistas nova-iorquinos.
Esta é a etapa que propicia a Patti e Robert o necessário amadurecimento pessoal e artístico. Por este refúgio passaram, entre outros, Jimi Hendrix, Janis Joplin, o escritor Arthur C. Clarke, o poeta Dylan Thomas, Bob Dylan, William Burroughs, Edie Sedgwick, entre outros.
O Chelsea parecia uma casa de bonecas de Além da imaginação, com uma centena de quartos, sendo cada um deles um pequeno universo. Eu vagava pelos corredores tentando encontrar seus espíritos, mortos ou vivos. Minhas aventuras eram algo sorrateiras, como entreabrir uma porta e ver de relance o piano de cauda de Virgil Thompson, ou ficar par ada diante da porta de Arthur C. Clarke, torcendo para que ele talvez surgisse de repente. (...) Tanta gente escreveu, falou e convulsionou nesses quartos vitorianos de casa de boneca.
Algum tempo depois eles conseguem alugar um loft a poucas quadras do Hotel, onde cada um tem seu próprio espaço de morada e criação. Quando, porém, com o passar dos anos, o bairro se torna decadente e violento, inicia-se uma nova fase na vida de ambos. Robert assume discretamente o relacionamento com o mecenas e colecionador de arte Sam Wagstaff Jr., que o instala em um loft na Bond Street, futuro point artístico, onde ele se dedica de corpo e alma à fotografia, definitivamente seu campo de atuação mais importante, ao lado do desenho, da pintura e de suas colagens.
Patti se une ao músico Allen Lanier, tecladista da banda que viria a ser conhecida como Blue Öyster Cult. Ele a convida para morar em um apartamento na East Tenth Street, bem próximo da St. Mark’s Church, onde ela realizou com sucesso seu ritual de iniciação pública no mundo da poesia, e a algumas quadras da morada de Robert.
Se um dia eu fosse apresentar meus poemas, ali seria o lugar. Meu objetivo não era simplesmente ler bem ou garantir minha presença. Era deixar minha marca na St. Mark. Fiz isso pela Poesia. Fiz por Rimbaud, e fiz por Gregory. Eu queria infundir o mundo da escrita com a urgência e o ataque frontal do rock and roll.
Enquanto o fotógrafo mergulha cada vez mais fundo no submundo sexual, matéria-prima de suas criações, Patti ingressa gradualmente no universo musical. Patti Smith encontra finalmente seu caminho no definitivo vínculo entre poesia e música, e seu álbum Horses, de 1975, foi eleito pela revista Times como um dos cem melhores de todos os tempos.


O livro tem início com a morte de Robert, e é assim que Patti conclui sua obra, tentando dizer adeus a sua estrela azul, que estará sempre brilhando em um céu pintado pelo artista, imortal em sua criação e perpetuado no trabalho da eterna companheira, não só nos desenhos hoje reconhecidos até mesmo pela Fundação Cartier de Paris, mas também em sua obra poética e na produção musical consagrada.
Dissemos adeus e saí do quarto dele. Mas algo me atraiu de volta. Ele caíra em um sono leve. Fiquei ali parada olhando para ele. Pacífico, como uma criança antiga. Ele abriu os olhos e sorriu. "Já voltou?" E tornou a dormir.
E assim minha última imagem foi a primeira. Um jovem adormecido sob um manto de luz, que abriu os olhos com um sorriso de reconhecimento para alguém que nunca fora uma estranha para ele.
Patti vive atualmente em Detroit, ao lado do marido, o músico Fred Sonic Smith, com quem tem dois filhos, Jackson e Jesse Paris. Entre seus livros estão Babel e Auguries of Innocence.

Editora: Companhia das Letras
Autor: Patti Smith
ISBN: 9788535917765

Origem: Nacional

Ano: 2011

Edição: 2

Número de páginas: 272

Acabamento: Brochura

Formato: Médio

Volumes: 1

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